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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

DESAPOSENTAR

Ele chegou à praça com uma marreta. Endireitou a estaca de uma muda de árvore e firmou batendo com a marreta.
Amarrou a muda na estaca e se afastou como pra olhar uma obra de arte.
Não resisti a puxar conversa:
- O senhor é da prefeitura?
- Não, sou da Alice, faz quarenta e dois anos. Minha mulher.
- Ah... O senhor quem plantou essa muda?
-Não, foi a prefeitura.
Uma árvore velha caiu, plantaram essa nova de qualquer jeito, mas eu adubei, botei essa estaca aí.
Olha que beleza, já está toda enfolhada. De tardezinha eu venho regar.
- Então o senhor gosta de plantas.
- De plantas, de bicho, até de gente eu gosto, filho.
- Obrigado pela parte que me cabe...
Ele sorriu, tirou um tesourão da cinta e começou a podar um arbusto.
- O senhor é aposentado?
- Não, sou desaposentado.
Foi podando e explicando:
- Quando me aposentei, já tinha visto muito colega aposentar e murchar, que nem árvore que você poda e rega com ácido de bateria...
Sabia que tem comerciante que rega árvore com ácido de bateria pra matar, pra árvore não encobrir a fachada da loja?
É... aí fica com a loja torrando no sol!
Picotou os galhos podados, formando um tapete de folhas em redor do arbusto.
- É bom pra terra... tudo que sai da terra deve voltar pra terra...
Mas então, eu já tinha visto muito colega aposentar e murchar.
Botando bermuda e chinelo e ficando em casa diante da televisão.
Bundando e engordando...
Até que acabaram com derrame ou infarto, de não fazer nada e ainda viver falando de doença.
Cortou umas flores, fez um ramalhete:
- Pra minha menina. A Alice. Ela é um ano mais velha que eu, mas fica uma menina quando levo flor.
Ela também é desaposentada.
Ajuda na escola da nossa neta, ensinando a merendeira a fazer doce com pouco açúcar e salgados com os restos dos legumes que antes eram jogados fora. E ajuda na creche também, no hospital.
Ihh... A Alice vive ajudando todo mundo, por isso não precisa de ajuda, nem tem tempo de pensar em doença.
Amarrou o ramalhete com um ramo de grama, depositou com cuidado sobre um banco.
- Pra aguar as mudas eu tenho que trazer o balde com água lá de casa.
Fui à prefeitura pedir pra botarem uma torneira aqui.
Disseram que não, senão o povo ia beber água e deixar vazando.
Falei pra botarem uma torneira com grade e cadeado que eu cuidaria.
Falaram que não.
Eu teria que ficar com o cadeado e então ia ser uma torneira pública com controle particular, e não pode.
Sorriu, olhando a praça.
Aí falei: então posso cuidar da praça, mas não posso cuidar de uma torneira?
Perguntaram, veja só, perguntaram se tenho autorização pra cuidar da praça!
Nem falei mais nada. Vim embora antes que me proibissem de cuidar da praça...
Ou antes que me fizessem preencher formulários em três vias com taxa e firma reconhecida, pra fazer o que faço aqui desde que desaposentei...
Ta vendo aquele pinheiro fêmea ali?
A Alice que plantou.
Só tinha o pinheiro macho. Agora o macho vai polinizar a fêmea e ela vai dar pinhões.
- Eu nem sabia que existe pinheiro macho e pinheiro fêmea.
- Eu também não sabia, filho.
Ihh... aprendi tanta coisa cuidando dessa praça!
Hoje conheço os cantos dos passarinhos, as épocas de floração de cada planta, e vejo a passagem das estações como se fosse um filme!
- Mas ela vai demorar pra dar pinhões, hein? - falei, olhando a pinheirinha ainda da nossa altura.
Ele respondeu que não tinha pressa.
- Nossa neta é criança e eu já falei pra ela que é ela quem vai colher os pinhões.
Sem a prefeitura saber... e a Alice falou que, de cada pinha que ela colher, deve plantar pelo menos um pinhão em algum lugar.
Assim, no fim da vida, ela vai ter plantado um pinheiral espalhado por aí.
Sem a prefeitura saber, é claro, senão podem criar um imposto pra quem planta árvores...
- É admirável ver alguém com tanta idade e tanta esperança!
Ele riu:
- Se é admirável eu não sei, filho, sei que é gostoso.
E agora, com licença, que eu preciso pegar a Alice pra gente caminhar.
Vida de desaposentado é assim: o dinheiro é curto, mas o dia pode ser comprido, se a gente não perder tempo!
(Domingos Pellegrini)

                                     (Imagem Google)

sábado, 20 de agosto de 2016

ENCONTRO DE AGOSTO

"Numa terra em guerra havia um rei que causava espanto. Sempre que fazia prisioneiros, não os matava: Levava-os a uma sala onde havia um arqueiro do lado de uma imensa porta de ferro, sobre a qual viam-se gravadas figuras de caveiras cobertas por sangue. Nesta sala ele os fazia enfileirar-se em círculo e dizia-lhes então:

- Vocês podem escolher entre morrer a flechadas por meus arqueiros ou passarem por aquela porta que será trancada logo após sua passagem.

Todos escolhiam serem mortos pelos arqueiros. Ao terminar a guerra, um soldado que por muito tempo servia ao rei se dirigiu ao soberano:

- Senhor, posso lhe fazer uma pergunta?

- Diga soldado.

- O que havia por detrás da assustadora porta?

- Vá e veja você mesmo.

O soldado então, abre vagarosamente a porta e, na medida em que o faz, raios de sol vão adentrando e clareando o ambiente. E, finalmente, ele descobre, surpreso, que a porta se abria sobre um caminho que conduzia à liberdade!!! O soldado, admirado, apenas olha seu rei, que diz:

- Eu dava a eles a escolha, mas preferiram morrer a se arriscar a abrir esta porta". 

(Desconheço autoria)

Essa foi a parábola que usamos na reunião que tivemos ontem. 
Ao ler, cada qual o interpretou de  forma diferente, baseada em sua vivência.
Medos, sonhos, oportunidades, limitações, realizações, arrependimentos, escolhas, foram palavras chave atribuídas  na leitura pessoal de cada uma ,  o que  nos possibilitou tecer uma rica troca de experiências.
Após a roda de conversas fizemos um  exercício com tapotagem e finalizamos com uma visualização, ao som de uma música xamanica e essência de lavanda borrifada no ar.


                                imagem google

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

UM CAFÉ E UMA SAUDADE

Meu pai foi um homem muito simples, nunca aprendeu a ler e escrever. 
Na infância e adolescência o via como alguém de quem eu gostava muito, mas o qual, eu pouco  conhecia. 
Sabia apenas que era alguém que apreciava  passarinhos, flores, café e contar causos. 
Isso porque sempre fui mais próxima da mãe, com a qual passava a maior parte do tempo, embora fossemos de geração diferente e ela pouco falava de si, éramos boas amigas.  
Já fazem vinte anos que ela partiu, quando isso aconteceu me aproximei muito do meu pai.
Tive então a oportunidade de conhecer  o homem maravilhoso que ele era, dono de um coração carregado por  enorme amor pela vida, alegria genuína , fé, coragem e uma força interna muito grande.
Força que se fez mais presente em dois tristes momentos , quando ele despediu-se da esposa, com a qual viveu um casamento de 51 anos e apenas três meses depois, do filho mais velho. 
Mesmo envolto em sua própria dor e tristeza, sempre nos recebeu com um largo sorriso nos lábios, nos mostrou que a vida segue em frente, que as lembranças amadas são  permanentes em nosso coração.
Choramos várias vezes em meio a essas  lembranças e depois de cada derramar de lágrimas ele nos confortava com uma palavra amável e uma xícara de café quentinho. 
A última vez que nos vimos conversamos e rimos muito, eu o abracei e disse o quanto o amava. Como é bom quando aproveitamos os momentos para demostrar nosso amor, pois uma semana depois ele partiu para pátria espiritual, mas antes, despediu-se de cada filho presente, eu por morar longe não estava e segundo minha irmã, suas últimas palavras foram: "dá um beijo em todos" .
Como não amar e ter um orgulho enorme dessa pessoa, que mesmo em momento de dor física pensou naqueles que lá não estavam e nos acarinhou com seu beijo?
Como domingo comemora-se o dia dos pais, senti vontade de fazer um post falando dele.
Alguém que há nove anos abraço sempre em minhas orações e de quem sinto enorme saudade. 
Amor eterno!

(Sônia A.)








segunda-feira, 1 de agosto de 2016

VIOLINOS NÃO ENVELHECEM

Eu a escrevi faz muito tempo - uma estória de amor. Quem a leu, eu sei, não se esqueceu.
Por razão do dito pela Adélia: "o que a memória ama fica eterno". História de amor não inventada, acontecida, tão comovente quanto Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa. O que fiz foi só registrar o acontecido.

Preciso contá-la de novo, para benefício daqueles que não a leram pela primeira vez, e a fim de acrescentar um final novo, inesperado, acontecido depois.
A testemunha que me relatou o sucedido foi sobrinho, médico-músico, pessoa querida e bonita.

Atrasou-se para um compromisso na minha casa, chegou três horas depois, explicando que havia ido ao velório de um tio de 81 anos de idade que morrera de amor. Parece que seu velho corpo não suportara a intensidade da felicidade tardia, e os seus músculos não deram conta do jovem que, repentinamente, dele se apossara.

O amor surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência.
Mas naqueles tempos havia uma outra Aids, chamada tuberculose, que se comprazia em atacar as pessoas bonitas, os artistas, os apaixonados - esses eram os grupos de risco.
Pois ela, a tuberculose, invejosa da felicidade dos dois, alojou-se nos pulmões do moço, que teve de ir em busca de ar puro, no alto das montanhas, sanatório, tal como Thomas Mann descreve em seu livro -A montanha mágica.

Quem ia para tais lugares despedia-se com um "adeus", um olhar de "nunca mais".
Na melhor das hipóteses, muitos anos haveriam de passar antes do reencontro.
Imagino o sofrimento da jovem dividida: o corpo, naquela casa, a alma por longe terra!
Na vida daquela menina, que surda, perdida guerra...(Cecília Meireles).
Valeram mais os prudentes conselhos da mãe e do pai: não trocar o certo pelo duvidoso.

Vale mais um negociante vivo que um tuberculoso morto. E aconteceu com ela o que aconteceu com a Firmina Dazza, que de longe e às escondidas namorava o Fiorentino Ariza, na estória de Gabriel García Márquez, Amor nos tempos do cólera, que foi obrigada pelo pai a se casar com o doutor Urbino: não se troca um médico por um escriturário. Casou e com ele ficou até que, depois de 51 anos, veio a libertação...

Ela casou. Ele casou. Nunca mais se viram. Quando ele tinha 76 anos, ficou viúvo. Quando ela tinha 76 anos (ele tinha 79), ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele estava vivo. A curiosidade e a saudade foram fortes demais. Foi procurá-lo. Encontraram-se. E, de repente, eram namorados adolescentes de novo.

Resolveram casar-se. Os filhos protestaram. Eles, os filhos, todos os filhos, não suportam a idéia de que os velhos também têm sexo. Especialmente os pais. Pais velhos devem ser fofos, devem saber contar estórias, devem tomar conta dos netos. Mas velho apaixonado é coisa ridícula. Não combina. Mais detalhes no livro da Simone de Beauvoir sobre a velhice. E houve também aquela estória do programa Você decide: o velho pai, infeliz a vida inteira com a esposa, encontra uma mulher por quem se apaixona.

A pergunta: ele deve ou não deve deixar a esposa para viver o novo amor? Você decide... A decisão do público - os filhos, evidentemente: "Não, ele não deve viver o novo amor..."
Os filhos sempre decidem contra o amor dos pais.

Mas, na nossa estória, os dois velhos deram uma solene banana para os filhos e foram viver juntos em Poços de Caldas. Viveram um ano de amor maravilhoso, e ele até começou a escrever poesia e voltou a tocar  o violino que ficara por mais de 50 anos sobre um guarda roupa, porque a esposa não gostava de música de violino. Confessou ao sobrinho: "Se Deus me der dois anos de vida com esta mulher, minha vida terá valido a pena..." Bem que Deus quis. Mas o corpo não deixou. Morreu de amor, como temia o Vinícius.

Achei a estória tão bonita que a transformei numa crônica a que dei um título inspirado nas Sagradas Escrituras: "..e os velhos se apaixonarão de novo".
Começa aqui o novo final para a estória.
Passaram-se semanas. Eram dez horas. Eu estava trabalhando no meu escritório. O telefone tocou.
Voz aveludada de mulher do outro lado.

- É o professor Rubem Alves?
- Sim, respondi secamente. Eu sou sempre seco ao telefone.
- Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu com o título: " ...e os velhos se apaixonarão de novo". O senhor já deve ter adivinhado quem está falando....
- Não, respondi. Por vezes eu sou meio burro. Aí ela se revelou:
- Sou a viúva.

Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de 40 minutos, interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que os dedos dele já estivessem duros demais...

Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível! Sim, sim! Nem os violinos ficam velhos demais, nem os dedos ficam impotentes para produzir música! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo, chorando - tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia... Ao terminar, ela fez esta observação maravilhosa:

-Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com sexo. A gente vive de ternura!

Aqui termina a lição do Evangelho.
(Rubem Alves)

                                            (imagem google)